14 de outubro de 2009

BREVE DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS PODERES VINCULADO E DISCRICIONÁRIO (II PARTE)

Não há que se confundir discricionariedade com arbitrariedade; trata-se de termos antinômicos, pois esta é ação contrária a lei, que a excede nos seus limites, sendo portanto ilegal e podendo, via de conseqüência, ser levada à apreciação do Poder Judiciário; e aquela, por sua vez, é a liberdade de ação da Administração, mas dentro do que a lei lhe permite, e circunscrita àqueles elementos que vimos acima, pelos quais há sempre presente algum quantum de vinculação em qualquer ato administrativo, a saber, a competência, a finalidade e a forma. A liberdade que se apregoa, assim, vai recair não sobre estes requisitos, mas sobre os meios e os modos de atuação do administrador, os quais podem se revelar, segundo a ocasião, na escolha do momento da prática do ato, de seu conteúdo, motivação e até mesmo alguns aspectos formais de sua realização.

Como saber se um ato é ou não discricionário? Os atos resultantes dos poderes vinculado e discricionário são legais; isso já sabemos; a diferença vai residir em que nos atos vinculados o administrador está diante de conceitos unisignificativos, que admitem apenas uma solução, enquanto que nos atos discricionários, o administrador tem opções diferentes, e qualquer daquelas por que optar vai estar cumprindo a lei; nesse caso, os conceitos a ele trazidos pela norma são plurisignificativos, de natureza menos precisa, ensejando a análise de conveniência e da oportunidade de agir.

Observe-se, no entanto, que a mera existência de conceitos plurisignificativos não é, por si só, suficiente para dela se concluir a discricionariedade do administrador. Os conceitos devem ser interpretados de maneira a melhor atender a utilidade pública; a valoração resultante desse processo deve ser auferida segundo o critério da razoabilidade, e a observância ou não dos limites que tal critério impõe é que determinará o alcance do controle judiciário sobre os atos da Administração. Isso não significa que o Poder Judiciário interferirá no mérito da atuação administrativa! A intervenção da Justiça será às vezes necessária, precisamente para averiguar o respeito do administrador às fronteiras de sua discricionariedade, além das quais o que existe é arbitrariedade, é ilegalidade.

Como exemplos da manifestação do poder discricionário da Administração, podemos citar a nomeação de ministros dos Tribunais Superiores e Tribunais de Contas, em que os conceitos de "ilibada reputação" e "notório saber jurídico" permitem a escolha do administrador; ou então a licença de porte de arma, esta avaliada segunda a conveniência e prudência de se a conceder, dentre tantos outros que a prática nos fornece.

Os atos discricionários são revogáveis pela própria Administração, e os efeitos de tal iniciativa serão ex nunc, respeitados, assim, aqueles já produzidos. Podem ser anulados pelo Judiciário.

Não se há que pensar que a discricionariedade resulta da ausência de lei.

Para ter-se como liso o ato, não basta que o agente alegue que operou no exercício de discrição. O juiz poderá verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidades em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada. Em razão disso, o Judiciário poderá concluir que, naquele caso submetido a seu crivo, a toda evidência a providência tomada era incabível, dadas as circunstâncias presentes e a finalidade que animava a lei invocada. O mero fato de a lei, em tese, comportar o comportamento, não seria razão bastante para assegurar-lhe legitimidade e imunizá-lo da censura judicial.

Não haveria nisto invasão no chamado mérito do ato - do legítimo juízo que o administrador, nos casos de discrição, deve exercer sobre a conveniência ou oportunidade de certa medida. A censura judicial não implicaria invasão do mérito do ato. A interpretação do sentido da lei, para pronúncia judicial, não agrava a discricionariedade; não penetra na esfera de liberdade administrativa, tão-só lhe declara os contornos; não invade o mérito do ato.

Discricionariedade só existe nas hipóteses em que, perante a situação vertente, seja impossível reconhecer de maneira pacífica e incontrovertível qual a solução idônea para cumprir excelentemente a finalidade legal.

Mérito do ato »» é o campo de liberdade suposto na lei para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal.

Fundamento da discricionariedade:

O fundamento da discricionariedade reside, simultaneamente, no intento legislativo de cometer ao administrador o encargo, o dever jurídico, de buscar identificar e adotar a solução apta para, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei. Só transfere ao administrador o cometimento de eleger in concreto a solução ideal.

A esfera de liberdade administrativa pode resultar da hipótese da norma jurídica a ser implementada, do mandamento dela ou, até mesmo, de sua finalidade. Tal liberdade é sempre relativa, sempre limitada e sempre contestável pelo Judiciário.

Gonçalves Pereira: “A discricionariedade começa onde acaba a interpretação...”

Hipóteses para a discricionariedade:

* decorre da hipótese da norma jurídica a ser implementada.

* discrição quanto à finalidade do ato.

* defluir do mandamento da lei.

* quanto à forma do ato.

* quanto ao momento de sua prática.


LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE:

É um poder demarcado e limitado.

Ao Judiciário assiste não só o direito, mas o indeclinável dever de se debruçar sobre o ato administrativo, praticado sob título de exercício discricionário, a fim de verificar se se manteve ou não fiel aos desideratos da lei.

Se há lei é porque seus termos são inevitavelmente marcos significativos, exigentes ou autorizadores de uma conduta administrativa, cuja validade está, como é crucial, inteiramente subordinada à adequação aos temos legais. Não há comportamento administrativo tolerável, perante a ordem jurídica, se lhe faltar afinamento com as imposições normativas. A última palavra só pode ser do Judiciário.

Cirne Lima: “O fim e não a vontade domina todas as formas de administração... Administração é atividade de quem não é senhor absoluto ... Na Administração o dever e a finalidade são predominantes.”

Ao fixar interesses a serem cumpridos, a lei estabelece as condições de fato para o agir da Administração e em tal caso e só nele se preenchem os requisitos necessários para que a finalidade normativa se considere satisfeita.

Não há como separar o motivo da finalidade e do interesse que, pelo cumprimento dela, se vê atendido. Noções inter-relacionadas e indissociáveis.

Ausentes as condições ou desvirtuada a finalidade que justifica o comportamento, não havendo adequação necessária entre o ato e a lei, resultando daí invalidade indiscutível. Ter-se-á configurado incompetência material, pois haverá agido fora do âmbito de poderes que lhe assistiam in concreto. Se o exercita fora deste quadro, terá manipulado forças que a lei não lhe deu, vale dizer, haverá extravasado a regra de competência.

EXTENSÃO DO CONTROLE JUDICIAL:

Nada há de surpreendente, então, em que o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. É meio pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito.

a) exame dos motivos »» a pesquisa da ilegalidade administrativa admite o conhecimento, pelo Poder Judiciário, das circunstâncias objetivas do caso. Cabe ao Poder Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da administração.

Caio Tácito: “Se inexiste motivo, ou se dele o administrador extraiu conseqüências incompatíveis com o princípio de direito aplicado, o ato será nulo por violação da legalidade. Não somente o erro de direito, como o erro de fato autorizam a anulação jurisdicional do ato administrativo. Negar ao juiz a verificação objetiva da matéria de fato, quando influente na formação do ato administrativo, será converter o Poder Judiciário em mero endossante da autoridade administrativa, substituir o controle da legalidade por um processo de referenda extrínseco.”

É o exame dos motivos meio hábil para a contenção do administrador na esfera discricionária que lhe assista.

Assim como ao Judiciário compete fulminar todo comportamento ilegítimo da Administração, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela - desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam.

A análise dos pressupostos de fato que embasaram a atuação administrativa é recurso impostergável para aferição do Direito e o juiz, mantém-se estritamente em sua função quando procede ao cotejo entre o enunciado legal e a situação concreta.

b) exame da finalidade: desvio de poder: também na perquirição da finalidade o Judiciário comparece a fim de controlar a legitimidade da atuação administrativa.

Há desvio de poder quando o agente vale-se de uma competência para alcançar finalidade não abrigada por ela. Descoincidência objetiva entre a norma de competência e o ato praticado.

No desvio de poder, o comportamento do agente está em descompasso com a finalidade comportada pela regra de competência. O ato praticado é nulo.

Toma-se como referencial a finalidade normativa, isto é, seu alcance, e confronta-se com ela o ato administrativo, fulminando-o se foi praticado em desacordo com o objetivo legal.

c) exame da causa do ato: “causa” »» relação de adequação entre os pressupostos do ato e o seu objeto. Esta relação se avalia em função da finalidade do ato.

O exame da causa apresenta especial relevo nos casos em que a lei omitiu-se na enunciação dos motivos, dos pressupostos, que ensejaram a prática do ato.

CONCLUSÃO:

Os motivos e a finalidade indicados na lei, bem como a causa do ato, fornecem as limitações ao exercício de discrição administrativa.

Todo este procedimento é não apenas um direito que assiste ao Judiciário, mas, sobretudo, um dever indeclinável - direito no caso concreto. É o meio específico e próprio de identificar os confins da liberdade administrativa e assegurar o princípio da legalidade. É a expressão concreta de dois outros princípios magnos: o de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de ato fundado procedentemente em lei e o de que nenhuma lesão de direito individual pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário.

A ilegitimidade pode resultar de manifesta oposição aos cânones legais ou de violação menos transparente, porém tão viciada quanto a outra. Isto sucede exatamente quando a Administração, em nome do exercício de atividade discricionária, vai além do que a lei lhe permitia e, portanto, igualmente a ofende. Esta forma de ilegalidade não é menos grave que a anterior.

O proceder do Judiciário não elimina a discricionariedade e nem pode fazê-lo, pena de agravo à própria lei.

O campo de apreciação meramente subjetiva - conveniência ou oportunidade de um ato - permanece exclusivo do administrador e indevassável pelo juiz, sem o que haveria substituição de um pelo outro.